foto de Modì:
Florença, 1909 (autor desconhecido). *
A vida de Modigliani foi uma
sucessão de fracassos, devidos à ruína financeira da
família e a uma postura extravagante que escondia uma personalidade
inconformada e orgulhosa. De resto, foi para sempre compensado pelo amor da sua jovem e bonita esposa, Jeanne Hébuterne,
que na noite seguinte à morte do pintor suicidou-se ao lançar-se do 5º
andar da casa onde moravam os seus pais em Paris.
A HERANÇA
Alguma razão teria a mãe de Amedeo Clemente
Modigliani para abandonar o seu filho predilecto (se
pode dizer-se que alguma mãe possa ter 'um filho predilecto' ou
'abandoná-lo') até à
morte na mais extrema pobreza, tuberculoso, viciado em drogas e
bebedeiras, que passou os seus últimos dias no hospital de la Charité
de Paris, refúgio dos
indigentes. A ruína da família, que em tempos fora próspera e
culta? Os caprichos do jovem pintor, que se deixou envolver em
vícios e extravagâncias?
«Será ele um artista?» — perguntava-se várias vezes Eugènie
Garsin. As mães raramente se enganam e a mãe de Modigliani contribuiu
decisivamente para a instrução do seu filho (em Livorno, Nápoles, Capri,
Roma, Florença, Veneza e por fim Paris). Sustentou-o até onde
pôde com uma mesada que lhe permitia ostentar estranhas
indumentárias: jaquetas de veludo e camisas de chita, lenços
vermelhos ao estilo de Garibaldi (segundo Max Jacob, Picasso terá
dito certa vez: «El único en Paris que sabe vestir es Modigliani»), num
conjunto desprendido que incluía uma pose orgulhosa e irascível
apesar do seu metro e sessenta e cinco, rematado por
«cabelos negros como as penas de um corvo,
que circundam uma fronte poderosa»
(segundo o escultor russo Ossip Zadkine).
Mas, se uma mãe pode prever a desgraça de um filho a partir da
sua própria desgraça no momento de o dar à luz (a família sucumbiu
nos negócios no ano em que Amedeo nasceu), não é seguro que possa
— ou queira — contrariar o destino de um homem doente e culto que se dedicava com prazer à
interpretação
da tragédia de Nietzsche, de Verlaine, Laforgue, Lautréamont, Baudelaire e Mallarmé (este que, segundo Bonnefoy, «concebeu-nos para o suicídio, para nos
dissiparmos e não sermos senão consciência pura»). Enfim, um
homem, e já não apenas um filho, seduzido pelo mito duma juventude
simultaneamente pessimista, desesperada e triunfadora!
Eis o pobre Modigliani. Pobre e orgulhoso, porque uma mãe nunca
deixa um filho sem herança...
O MAPA TRÁGICO
Amedeo nasceu em Livorno, na região da Toscânia, Itália, a 12 de Julho de 1884.
Foi o quarto e último filho de Flaminio e Eugènie, tão cedo votado
para uma vida artística como para o infortúnio: aos onze anos sofreu
de uma pleurisia, aos catorze teve tifo e aos dezassete estava
tuberculoso. Definitivamente, todas as pequenas bactérias lhe
causavam grandes tormentas.
Matriculou-se em Belas-Artes em Florença (1902) e em Veneza
(1903). Nos inícios de Fevereiro de 1906, quando
chega a Paris, este jovem de ascendência judia tem de competir com cerca
de 30 mil
artistas oriundos de toda a Europa e da América à procura de
reputação.
Instala-se provisoriamente no hotel The Madeleine até
arranjar um atelier numas águas-furtadas da Rue Caulaincourt,
no bairro de Montmartre, e frequenta os cafés da Place des Abbesses.
Estuda na Académie Colarossi, onde tem aulas de modelo vivo, e em
1907 conhece o seu primeiro patrono, o médico Paul Alexandre, e
muda-se para a Rue du Delta, muito perto da Rue de Dunkerque.
Habita, depois, o nº39 da Passage de l'Elysée des Beaux-Arts (hoje
rua André Antoine), de onde desce até ao Pigalle e volta a subir até
à Place Goudeau, sob o olhar de prostitutas, travestis e pequenos
traficantes de droga, ao encontro da velha fábrica de pianos que Picasso, Bracque e
Jean Gris haviam transformado em ateliers de onde nasceu o
Modernismo
— o Le Bateau Lavoir (em 1908 Modigliani passou ali uma breve temporada, mas não lhe
satisfazia o estilo cubista). Muito perto, na Rue Norvins, viverá
entre 1914 e 1916 um
atribulado romance com Beatrice Hastings, pseudónimo literário de Emily Alice Henrique,
a escritora inglesa que haveria de se suicidar em 1943, atacada pelo
cancro e também ela excluída dos grandes círculos intelectuais
(Modigliani haveria de ter quase tantas residências como concubinas,
e a quase todas estas haveria de marcar com a sua tragédia).
Vive também durante algum tempo num quarto alugado por cima
do restaurante La Bohème du Tertre, junto ao Sacré Coeur, e
frequenta o mal-afamado Lapin Agile (então conhecido por cabaret des
Assassins), no cruzamento da Rue de Saules com a Saint-Vincent.
Recibos de aluguer comprovam também que desde 1909 trabalha num estúdio da Cité
Falguière, um beco da rua com o mesmo nome, no outro lado da Boulevard Pasteur, onde veio a instalar-se Amadeo de Souza-Cardoso.
Ambos fazem uma exposição no nº3 da Rue du Colonel Combes, a nova
residência do pintor português, em 1911.
Passeia pela Denfert-Rochereau, em cujos
bancos se deita para ressacar do absinto, vociferando
contra o Leão de Belfort — a famosa escultura de Frédéric Auguste Bartholdi
colocada no meio da praça em memória da resistência francesa
durante a guerra franco-prussiana. Com Anna Akhmátova declama versos de Verlaine nos bancos do
Jardin du Luxembourg,
porque, já pobre e solitário (a escritora russa diz que não se lembra de
alguém que o cumprimentasse no Quartier Latin, «onde todos eram mais ou menos conhecidos entre si»), não tem dinheiro para alugar uma
cadeira de esplanada.
No nº21 da Avenue du Maine, junto ao cemitério de
Montparnasse, come da sopa que lhe oferece Marie
Vassilieff, natural de Smolensk, então estudante na École de
Beaux-Arts (mais tarde fundadora da Russian Academy, depois Academia Vassilieff). No café La Rotunde, em Vavin, por onde parava
na companhia de Apollinaire e Diego Rivera, paga as despesas com
retratos de ocasião.
Visita regularmente Constantin Brancusi no seu atelier no
nº54 da Rue du Montparnasse, transversal da actual Boulevard, e
também o seu fiel amigo e agente Léopold Zborowski, de origem
polaca, no nº3 da Joseph Bara (Zborowski acumulou uma grande fortuna após a morte de
Modigliani, mas perdeu tudo na crise económica de 1929 e acabou por
falecer na miséria em 1931).
Fez um filho (que enjeitou) a Simone Thiroux, uma
vistosa estudante de arte proveniente do Canadá, com quem viveu
fugazmente entre 1916 e 1917. Ela haveria de morrer em 1925, também
tuberculosa.
Por fim, o seu último estúdio é (desde 1917) no nº8 da Rue de la Grande
Chaumiére, junto à Colorossi, onde então estudava Jeanne Hébuterne,
até se transferir
para a eterna morada, na esquina da Avenue Transversal com a Pachtod,
no Père-Lachaise, o famoso cemitério dos artistas na capital
francesa. Aqui descansa
num túmulo que diz: «Amedeo Modigliani... A morte o recolheu quando atingiu a glória».
O mesmo onde também se lê: «Jeanne Hébuterne... Companheira
devota até ao extremo sacrifício».
Modì (lê-se «maudit», que em francês quer dizer
maldito) não cedeu a estilos nem a mordomias. Na mesma cidade
que acolheu «Les grandes baigneuses» (1905), do cristão novo-rico Cézanne, e
«Les demoiselles d'Avignon» (1907) do vaidoso Picasso, a sua única
exposição individual, na Berthe Weill Gallery, foi encerrada pela
polícia no próprio dia da inauguração, a 3 de Dezembro de 1917, com a
estranha acusação de atentar contra o pudor...
Como disse um dia Akhmátova, que teve com ele um
breve romance em 1911,
Modigliani vivia na miséria, mas nunca se queixava «nem da pobreza, tão evidente, nem da não menos evidente falta de reconhecimento». Morreu a 24 de Janeiro de 1920,
com 36 anos incompletos.
No dia do seu funeral recebeu as
honras dos maiores artistas de Paris, de empregados de mesa dos
bares de boa e de má reputação de toda a Montmartre, de bailarinas de
cabaret, de prostitutas e de mecenas. A notícia da sua morte correu
célere entre intelectuais e negociantes de arte: chegaram a compará-lo
com Botticelli. Mas a honra maior foi-lhe concedida pela sua jovem esposa, Jeanne,
de somente 22 anos de idade: na noite seguinte à morte de Modigliani subiu ao quinto andar da casa
onde moravam os pais e atirou-se... Carregava na barriga um filho com quase
9 meses de gestação. Sobreviveu-lhes (até 1984) a outra filha de ambos, então com menos de 2 anos de idade,
que foi adoptada pela irmã do pintor.
14 PINTURAS DE MODIGLIANI
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Paris acordou com a morte de Modigliani
Só em 1930 a família de Jeanne, de severa educação católica, acedeu a sepultar a jovem
esposa no mesmo
túmulo do artista «pobre, judeu e estrangeiro». Como em Zaratustra, de Nietzsche («God is dead.»), Paris acordou com a
morte de Modigliani. A capital francesa revelara-se mais fechada e
mais xenófoba do que a Itália do início do século, habituada à
diversidade cultural — a herança de Verdi.
A França do período pós-Dreyfus foi dolorosamente severa para este «Modigliani, judeu!»
— como se apresentava contrariando a postura de muitos dos outros
artistas judaicos. Esta circunstância (que o levava a
conviver preferencialmente com os 'párias' do Leste da Europa: os
russos Chagall, Soutine, Akhmátova,
Vassilieff e Zadkine, o romeno Brancusi, o polaco Zborowski...), determinou a
singularidade da sua obra e, por fim, a sua fama. Pobre e orgulhoso,
enfim — a gloriosa herança da mãe.
O caso Akhmátova: um amor platónico?
A célebre escritora
russa Anna Akhmátova chegou a Paris em 1910 na companhia do poeta N. S. Gumilyov.
Acabada de casar, ainda assim não resistiu aos estranhos encantos do
pintor «de cabelos negros como as penas de um corvo» (como disse Zadkine).
Trocaram cartas e ele fez-lhe 16 retratos — alguns nus —, mas sempre
à distância. A prova de que esta platónica relação não terá passado
disso mesmo está relatada numa crónica da própria: «Certa vez, ao que parece, não combinamos bem o encontro e, tendo ido chamar Modigliani, não
cheguei a vê-lo. Resolvi então esperar alguns minutos. Como levava
nas mãos uma braçada de rosas vermelhas, decidi lançar as flores para dentro do atelier
através da janela por cima do portão trancado. Visto que Modigliani não aparecia, fui embora.
Quando nos encontramos, mais tarde, ficou perplexo: como poderia eu ter entrado no quarto
fechado se só ele tinha a chave? Expliquei o ocorrido, ao que ele
respondeu: —Não pode ser, elas estavam colocadas de modo tão bonito...»
(Fonte: SciELO — The Scientific Electronic Library Online, S.
Paulo, Brasil, 1998. Texto original de 1964, Moscovo).
Anna Akhmátova teve uma vida longa: faleceu em 1966, em Leninegrado (actual S.
Petersburgo), com quase 77 anos.
Noiva ou esposa?
Modigliani não chegou a
desposar
Jeanne Hébuterne, mas o casamento foi-lhe prometido.
* O autor do
retrato de Modigliani tirado em Florença em 1909 nunca foi
identificado. Fonte do Modigliani Institut de Roma admite tratar-se
de um fotógrafo italiano, mas a sua assinatura nunca foi decifrada.