manual de
sobrevivência
[ XIV ]
[ o cão escanzelado de Giacometti,
o mundo de moribundos segundo Genet
e as aparições de Hessel ]
Pouco antes de morrer, Stéphane Hessel disse que,
evidentemente, sabia que já não estava num campo de concentração
nazi, mas ainda sentia a presença de Hitler muitas vezes no mundo à
sua volta. No dia a seguir à sua morte, em Fevereiro de 2013, o Liberation publicou uma longa matéria a partir de uma
entrevista a Hessel, onde ele dizia o seguinte: «J'ai toujours pensé qu'un prisonnier est fait
pour s'evader.»
«Chega de democracia para inglês ver!», gritam
os prisioneiros dos mercados e da corrupção nas ruas do Brasil.
A presidente, Dilma Rousseff, está a prometer aliviar
a fome dos indignados, mas estes terão de confrontar-se
de novo, depois do espectáculo do futebol e da
visita do Papa, com os ossos descarnados de mais um país
"emergente".
«Acordai!», clama o gigante brasileiro.
Hessel, que há-de ressuscitar ainda muitas vezes
entre os moribundos, costumava citar Shakespeare: «Nós somos feitos da mesma matéria que compõe os sonhos,
mas a nossa breve vida está envolta em sono.»
O Brasil, a China e a Índia são países "emergentes"
porque têm muitos moribundos para trabalhar e muitos moribundos para
consumirem o produto desse trabalho em condições desumanas.
O capitalismo continua a
dar voltas no seu próprio estômago...
foto HERMANN BREDEHORST
Stéphane Hessel (Fevereiro de 2012).
poderei
morrer assim, escanzelado, mas com toda a
minha raiva encarniçada nos ossos de bestas obesas.
_______
«Sou eu. Um dia vi-me assim na rua... um cão», disse Alberto
Giacometti a Jean Genet em 1957. Não estaremos hoje todos
escanzelados como o cão
de Giacometti? Afinal, o mundo de Giacometti era um mundo de
moribundos. Porque será que o que é verdadeiramente heróico (a
beleza, como diz Genet) tem de nascer sempre das feridas?
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