PAUL GAUGUINWoman with a flower (Vahine no te Tiare), 1891.
«Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
(...)
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus
umbrais.»
EDGAR
ALLAN
POE
Trad. Fernando Pessoa
Na noite de 23 de Dezembro
de 1888, na famosa Casa Amarela da Place Lamartine, em Arles, os enormes
Vincent van Gogh e Paul Gauguin envolveram-se numa violenta cena de
gritos e pancadaria por causa de uma prostituta de nome Raquel, que
com eles dividia os prazeres da carne e a compaixão. Gauguin pegou numa faca, e num
acesso de fúria rasgou a orelha do amigo e
fugiu. O pobre Van Gogh correu para os braços de Raquel, a quem
ofereceu a orelha cortada como sacrifício, e só depois terá dado
conta do seu sofrimento. Será lenda. Porém, imagina-se que os temperamentos de Van
Gogh e Gauguin não seriam fáceis, que os dois eram perseguidos pela
incapacidade para venderem as suas pinturas, que falhara o projecto
comum de fazerem da Casa Amarela uma grande residência de artistas, que
ambos viviam em grandes dificuldades financeiras, ambos sofriam de
alguma demência e ambos dependiam do amor fácil das mulheres do
prostíbulo local, razões mais do que suficientes para inflamar os
delírios de qualquer imaginação.
Eugène Henri Paul Gauguin nasceu em
Paris, em 1848, filho de Clóvis Gauguin, um republicano que temia
retaliações de Bonaparte III, e Aline Tristán, uma escritora
peruana, neta de Flora Tristán, a conhecida precursora dos movimentos
de libertação da mulher e do direito ao divórcio. Viveu os primeiros sete anos em Lima,
onde teve contacto com as civilizações pré-colombianas
(maias, astecas e incas). Voltou a França, alistou-se na Marinha,
viajou pelo mundo e regressou para trabalhar na Bolsa de Paris, onde
conseguiu algum sucesso.
Entretanto, casou-se com uma dinamarquesa de nome Mette Sophie Gad, com quem teve cinco filhos,
e cerca de doze anos depois separou-se: em Copenhaga, 1885, a esposa
acusa-o de uma mudança radical de carácter e não lhe reconhece capacidade para viver segundo as regras de um casamento cristão. Nisto, teve alguma influência
o pintor Camille Pissarro, nascido nas Ilhas Virgens (Golfo do
México), que o inspirou a desligar-se da sociedade burguesa,
percorrer o mundo e viver exclusivamente da pintura.
De novo nos arredores de
Paris, juntou-se ao grupo Les Nabis (os profetas), que tomava a
arte como filosofia de vida num ambiente pós-impressionista de vanguarda,
mas as dificuldades financeiras levaram-no a atravessar de novo o Atlântico
para trabalhar como operário
no Canal do Panamá, passando também por Martinica e pelo Brasil.
Regressou em finais de 1887 e pouco
depois iniciou
o seu período virulento com Van Gogh. Em 1891, depois da morte do
amigo, partiu para o Taiti.
Em 1893 voltou à Europa, publicou
Noa Noa, um relato inflamado da sua viagem pela Delightful Land (a
terra prometida de Pissarro), mas, porque não obteve o sucesso esperado, dois
anos depois decidiu radicar-se definitivamente na
Polinésia Francesa («Parto para estar tranquilo, para me livrar
das influências da civilização, não ter mais do que selvagens, viver
as suas vidas...»), pintou dezenas de quadros sobre a vida dos
indígenas e experimentou a libertinagem e os primeiros problemas de saúde. Tentou o
suicídio em 1898, e em 1901 instalou-se no arquipélago das Ilhas
Marquesas,
onde acabou por morrer de sífilis em 1903.
Em duas penadas, é este o retrato do
rebelião primitivo Gauguin («Quando a tua mão direita ficar hábil, pinta com a esquerda,
e quando a esquerda ficar hábil, pinta com os pés...»), que
escolheu viver numa atmosfera de símbolos ancestrais e cores
alucinadas, entre raparigas impúberes como Tehura, de Spirit of the dead watching
(1892), ou Annah, la javanesa,
também conhecida por Judita la pequeña mujer que todavía es virgen
(1893).
O seu corpo está sepultado no Cemitério
do Calvário de Atuona,
na ilha de Hiva Oa, a poucos metros do túmulo de Jacques Brel.
«Étonnants voyageurs! Quelles nobles histoires
Nous lisons dans vos yeux profonds comme les mers!
(....................)
Dites, qu’avez-vous vu?»
BAUDELAIRE
Depois daquele triste episódio da
orelha cortada, Gauguin e Van Gogh nunca mais se viram. Para Gauguin, as
paradisíacas ilhas do Pacífico Sul foram a sua
libertação. Quer dizer: se
havia alguma angústia na separação dos dois amigos (dois visionários que
não queriam viver separados e ao mesmo tempo não suportavam viver
juntos), de diferentes maneiras ambos encontraram o seu caminho, um
olhando para o seu mundo interior e o outro o contrário — ou o mesmo
de outra maneira.
Consta que quando pintou a enorme tela de título
D'où venons-nous? Que sommes-nous? Où allons-nous?, em 1897,
Gauguin fez lembrar Van Gogh:
«Pintei este quadro de um só
golpe. Eu queria morrer...»
«(...) Morrendo negro,
urdia sombras desiguais.»
POE
Como sempre acontece, cada qual
foi vítima do seu diferente destino.
AS TAITIANAS DE GAUGUIN #17 pinturas
_______
"Dites, qu’avez-vous vu?"
Ó viajantes maravilhosos! Que gloriosas histórias
lemos em seus olhos profundos como os mares!
Mostrem-nos as arcas das vossas ricas memórias,
essas maravilhosas jóias de estrelas e éteres. (...)
Digam-nos, o que vocês viram?
Nós vimos as estrelas
e as ondas e as areias. (...)
A glória da luz do sol sobre o mar violeta,
a glória das cidades em que o sol se põe
ardendo em nossos corações num inquieto desejo. (...)
Deleitamo-nos com estranhos ídolos,
tronos estrelados por luminosas jóias,
palácios habitados por fadas encantadas —
sonhos de ruína para tristes usurários. (...)
CHARLES BAUDELAIRE
Le Voyage, Les fleurs du mal, 1857.
no cabeçalho: D'où venons-nous? Que sommes-nous? Où allons-nous?,
1897.
No dia [ 31 de Julho de 2013 ] em que os sindicalistas do eixo do governo dizem que
mais vale emprego precário do que desemprego. Como no Bangladesh?
No mesmo dia em que o governo diz que os swaps
são um negócio entre bancos e empresas. Então, se o Estado quer
livrar-se de todas as suas empresas, para que é que precisa dos swaps?
(...)
Porque é que tem que ser o Estado a fazer as estradas, se são os
privados que ganham com as estradas? Porque é que tem que ser o Estado a fazer o TGV se são
os privados que ganham com o TGV? Porque é que tem que ser o Estado
a
subsidiar as escolas privadas, se são os privados que ganham com
elas? Porque é que tem que ser o Estado a subsidiar os hospitais privados,
se são os privados que ganham com eles? (...)
O Estado não tem como renunciar à sua narrativa (a água, a luz, o gás,
os telefones,
os transportes, a educação, a saúde...), e controlar os mercados em vez do
contrário.
No mesmo dia em que, na Itália, teme-se agora a
condenação de Berlusconi por causa da reacção dos mercados. Pois, os
mercados já dominam os governos, agora querem também dominar a
justiça...