o comboio de...
Cristina Peri Rossi
Às doces viagens da infância e às outras de tantas máquinas
mentirosas, do transiberiano de Pasternak (Doutor Jivago, David Lean,
1965) aos radicais vagões da Alemanha com falsas promessas às
raparigas casadoiras da Polónia, nunca faltou esse
amargo sabor de espera pelos «motores que entre nós aceleram/ os vazios comboios do sonho»
(Natália Correia, O Vinho e a Lira, 1969). Agora, há de novo esses
tristes
comboios dos que partem, indignados. E, no fim da linha, este outro comboio
ressuscitado: do desencanto dos velhos que ficam, das verdadeiras
(sábias e trágicas) revelações.
Falta-nos o comboio agressivo, dos
revoltados...
Cristina
Peri Rossi 2005.
Fonte: consumer.es
Vim de comboio
admirei a paisagem
em torno da tua cidade
e digo-te:
há um ar cinzento de cataclismo
atmosfera de desastre
plenilúnio de catástrofe
Anda
pela tua cidade
uma vigésima criança que mendiga
e óleos de musgo pendem
dos velhos edifícios
há
uma incerteza
vergôntea tragédia
há
um cheiro a rancor e a mortos
que me asfixia
ou será este silêncio das dez da noite pelas ruas
a cidade sem automóveis
a cidade com medo
e mil e um refugiados que se escondem nos bosques
dos teus perímetros balneários
e quinze mil presos políticos gemem em pocilgas
Há
uma luta subterrânea
um medo opaco
uma relva seca
uma impressão de ressentimento
e um silêncio de agouro
negro pássaro de morte
que anuncia por todos os lados
a vinda de outros tempos.
CRISTINA
PERI
ROSSI
Indicios Pánicos, 1970
trad.
Soledade Santos
_______
Diz hoje [ 30 de Outubro de 2013 ] o Jornal de Notícias, que o velho
comboio da linha do Vouga (o comboio da minha juventude), «por questões de segurança, devido à elevada degradação da via férrea», já só
pode andar a 10 quilómetros por hora: «fazer uma viagem de 30 km demora agora três horas.»
Assim anda o país, e nós como ele: devagar, devagarinho, já não como um sonho, mas como
um pesadelo da infância...
«É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o
dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não
passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos,
socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.» MIGUEL
TORGA, Diário IX, Chaves, 17 de Setembro de 1961.
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