28 de Agosto. Os EUA dizem que têm provas do uso de armas químicas na
Síria e apontam o dedo a Bashar al-Assad, diz hoje o Washington
Post. Os habituais aliados europeus preparam uma
intervenção militar, para mostrarem ao mundo de que lado
está a verdade...
Vem aí mais uma guerra. Como diria Kafka, depois do
almoço, piscina.
Começou o triste espectáculo das "universidades de
Verão" dos partidos políticos, à boa maneira da Hitlerjugend.
O que é que eles têm para ensinar aos nossos jovens?
os filhos do
Diabo
«Gritos de aflição vêm de Ramá; um choro sem fim;
inconsolável, Raquel lamenta os seus filhos, porque estão mortos.» (Mateus, 2:18)
Segundo alguma literatura religiosa
crê-se que os inocentes serão sempre submetidos às piores maldades, porque os homens tomaram a decisão de se
filiarem no Diabo em vez de seguirem a palavra de Deus.
Diz Clemente Romano, no capítulo 14-2 da sua Primeira Carta aos
Coríntios: «estaremos
expostos não a um prejuízo qualquer, mas a um grande
perigo, se nos entregarmos aos caprichos dos homens, que buscam a
discórdia e a revolta para nos separar da boa conduta.»
A demonização da humanidade tem como objectivo
principal cativar o interesse das pessoas para a importância da
figura do filho de Deus, mas no longo itinerário das tragédias que desde sempre perseguiram as crianças tem especial
significado esse episódio do chamado massacre dos inocentes,
supostamente atribuído ao rei dos Judeus: segundo algumas interpretações das escrituras do apóstolo
Mateus, foram sacrificados três mil recém-nascidos, catorze mil segundo a liturgia bizantina ou sessenta e quatro
mil segundo atradição da escola teológica síria,
diz Raymond Brown (Birth of the Messiah, 1977). Sem dúvida, uma contabilidade
fantasiosa: para este intelectual americano que se tornou conhecido
como historiador da Bíblia, não terão morrido mais do que umas vinte crianças, mas que
importância têm os números perante a brutalidade dos factos?
[ 1. mártires na Síria ]
Porque está o regime sírio a matar bebés? (Why the Syrian regime is killing babies?) Frida Ghitis,
CNN.
Vítimas do ataque com gás em Damasco, Síria, 21 de Agosto de 2013.
foto AFP
Nos dois últimos anos, o governo sírio
do ditador Bashar al-Assad levou a cabo aquilo que a editora de
política internacional Frida Ghitis classificou como
«a slow-motion massacre» (um massacre em camara-lenta, CNN
online, 16 de Agosto de 2012). Nos últimos 21 e 22 de
Agosto, segundo os opositores ao regime e algumas
organizações não-governamentais que operam no terreno, o exército
de Assad lançou um ataque químico que fez cerca de 1800 mortos
nos arredores de Damasco,
em grande parte crianças.
A História escreve-se muitas vezes em
círculos e pouco aprendemos com os erros do passado ou com os
ensinamentos das sagradas escrituras. Mais de dois mil anos depois,
estima-se que o advento da Primavera Árabe já provocou na Síria cerca de
100 mil mortos e 2 milhões de desalojados, dos quais metade são
crianças que vagueiam agora pelos
campos de refugiados do Iraque, do Líbano, da Jordânia e da Turquia,
fazendo lembrar a matança de Herodes e a fuga
de Jesus para o Egipto.
[ 2. demónios no Congo ]
Segundo o místico Frank E. Peretti (Este Mundo Tenebroso,
1986), na grande batalha espiritual os brancos militam no exército
de Deus e os negros no exército do Diabo.
Minas de diamantes de Mbuji-Mayi, República Democrática do Congo.
Na República Democrática do Congo, as
crianças que são rejeitadas pelas suas famílias dedicam-se a pedir,
a roubar, a engraxar sapatos, a vender sacos de água e carvão ou a
descer aos poços de pedras preciosas que alimentam os mercados da Bélgica, servindo os
senhores do dinheiro
sem nunca conseguirem escapar à miséria extrema. Só em Kinshasa são
entre 30 e 50
mil. Destes, pelo menos um terço são considerados «meninos
feiticeiros».
Há mais de trezentos anos, mas
em especial desde finais do século passado, é em nome de Deus que os
excêntricos exércitos de pastores evangélicos determinam se uma
criança está ou não possuída pelo demónio, prestando-se ao exorcismo
numa espécie de negócio que se tornou cada vez mais lucrativo. Depois de
um trabalho de sensibilização
realizado por diferentes organizações não governamentais, como a Amnistia Internacional,
os Médicos do Mundo e em especial a Human Rights Watch (sob a orientação dessa
extraordinária
senhora Alison des Forges, falecida em 2009), em todo o continente
africano dá-se agora um aumento
significativo do número destas crianças amaldiçoadas, segundo uma
reportagem de Louise Hunt publicada no jornal The Guardian em
17 de Janeiro de 2012.
Os «meninos feiticeiros» (kindoki)
são maioritariamente crianças órfãs: os pais morreram, as mães não
os podem criar ou os padrastos não os aceitam, roubam e
prostituem-se e — como em Angola, no Benim, no Ruanda, no Sudão, na Somália
e em tantos outros países pobres
—
acabam por ser vítimas de trabalho escravo, tráfico e violência sexual.
Acusados de serem responsáveis por
todos os males da família (morte, desemprego, doença e pobreza),
estas crianças são instigadas a acreditar que provocam a ira do Diabo e que as suas almas pairam à
noite pelos campos de diamantes
de Mbuji-Mayi
entoando melodias satânicas, mas a verdade é que as principais causas da
sua situação são a indiferença dos pais, a cumplicidade dos falsos
profetas e o negócio sujo que leva à pobreza extrema, que afecta cerca
de 95% da população.
Indiferença, cumplicidade e negócio sujo: transpondo para a escala global, afinal, quem provoca tanta
boca por alimentar?
[ 3. soldados no Uganda ]
«Sem crianças não se fazem guerras», diz Pedro Dória, um conhecido jornalista brasileiro jubilado pela Universidade
de Stanford,
na Califórnia.
Durante a II Grande Guerra, cerca de
25 mil adolescentes de ambos os sexos foram recrutados para lutarem
nas tropas da Hitlerjugend,
a conhecida Juventude Hitleriana. Em 1949, nas Convenções de Genebra
sobre Direito
Internacional Humanitário,
foi criminalizada a utilização de crianças com menos de 15 anos em
palco de guerra, mas a verdade é que, durante muitos anos depois, centenas
de milhares de crianças-soldados foram ainda utilizadas para
engrossar os exércitos governamentais ou de guerrilha na Colômbia,
no Peru, Serra Leoa, Argélia, Sudão, Congo, República Democrática do
Congo, Angola, Burundi, Uganda, Ruanda, Somália, Israel, Líbano,
Turquia, Iraque, Irão, Afeganistão, Sri Lanka, Mianmar, Camboja, Filipinas... Segundo dados da ONU, estima-se que existam actualmente
entre 200 e 300 mil pequenos soldados espalhados por dezenas
de países, especialmente em África.
Na República Democrática do Congo
foram utilizadas crianças-soldados (kadogos) na ajuda ao
exército que derrubou o ditador
Mobutu Sese Seko, em 1997.
No Uganda, só para servir o exército
da chamada Resistência do Senhor (LRA-Lord’s Resistance Army),
comandada pelo líder espiritual Joseph Kony, estima-se que
foram raptadas e treinadas entre 60 a 80 mil pessoas, na sua
maioria rapazes entre os 13 e os 14 anos de idade, segundo informações da especialista
brasileira Gabriela Saab Riva (Criança ou Soldado: O Direito Internacional e o Recrutamento de Crianças por Grupos Armados,
2012).
Resumindo, é também em nome de um Deus
desconhecido que as crianças são enviadas para as frentes de batalha, servindo
nos trabalhos domésticos, para carregar mantimentos e armas, para
transportar informações ou para bater o terreno sob fogo
cruzado, especializando-se na utilização de pistolas e metralhadoras, instigadas
muitas vezes a matar membros da própria família e, no caso das
raparigas, obrigadas a satisfazer os desejos sexuais dos soldados
nos acampamentos.
[ 4. escravos no Bangladesh ]
«Ontem fui espancada. O trabalho que eu fiz não
estava bem. (...) O supervisor deu-me uma bofetada e
disse-me para fazer melhor da próxima vez. Sinto-me ofendida.»
Halima, Global Labour online, Setembro de
2006.
foto INSTITUTE FOR GLOBAL LABOUR AND HUMAN
RIGHTS 2006.
Bangladesh:
Halima, de 11 anos, mostra como lava os dentes com cinza.
«The salary I get is not fair» (o salário que eu recebo não é justo).
Hoje [ 28 de Agosto de 2013 ] Alfonso
Navarrete Prida, Secretário do Trabalho e Previdência Social do
México, informou que cerca de 10% dos 30 milhões de jovens mexicanos
com menos de 14 anos já estão inseridos no mercado de trabalho,
concluindo: «o trabalho das crianças não resolve os problemas de pobreza nem as carências das famílias»
(agência LUSA).
Principalmente depois do desabamento
do Rana Plaza em Dacca (24 de Abril de 2013), onde funcionavam
diversas fábricas de têxteis clandestinas e que provocou pelo menos
1034 mortos, o mundo ficou a conhecer a
realidade de milhões de trabalhadores, muitos deles crianças, que
vivem no Bangladesh em condições desumanas.
A história das crianças do
Bangladesh que só têm tempo para trabalhar e dormir conta-se
facilmente através
do testemunho da pequena Halima, recolhido por Charles Kernaghan,
director do Institute for Global Labour and Human Rights, de Pittsburgh, EUA,
em Setembro de 2006.
Halima tinha então 11 anos, trabalhava
sete dias por semana e ganhava
cerca de 9 euros por mês (930 taka, na taxa de conversão
actual). Levantava-se às 6h30 da manhã e começava o seu dia de
trabalho às 8, depois de andar a pé durante quase uma hora. Às 12h30
fazia um pequeno intervalo para almoçar e continuava depois até às
cinco da tarde, mas tinha que ficar quase sempre até
às oito ou dez horas da noite. Foi várias vezes agredida fisicamente
no seu local de trabalho, onde era obrigada a permanecer mesmo com
problemas de saúde originados principalmente pelas altas
temperaturas no Verão, pela salubridade no Inverno e pela falta de água
potável.
Sete anos depois, e na sequência das
diversas denúncias internacionais, a remuneração mensal das crianças
que trabalham no Bangladesh subiu consideravelmente, segundo os padrões da
economia
local, e pode atingir hoje os 40 euros por mês. O dinheiro para
pagar estes salários, aqui como no Vietname, na
Indonésia, no Camboja e na China,
vem dos negócios lucrativos das grandes empresas e marcas de artigos
desportivos e fashion da América e da Europa, como a H&M da
Suécia,a Armani, a
Benetton, a Dolce & Gabbana, a FILA e a
Gucci de Itália, o El Corte Inglés, a Bershka e a
Zara de Espanha, o Bonmarché de Inglaterra e a
Primark-Denim da Irlanda, a Adidas e a PUMA da
Alemanha, a Lacoste da França, a Loblaw do Canadá, a
Calvin Klein, a Nike, a NY Clothes, a Ralph
Lauren e a Walmart dos Estados Unidos da América...
Halima é uma rapariga igual a milhares
de outras que trabalham actualmente em países do chamado Terceiro
Mundo: não tem
televisão em casa, não sabe o que é a economia global e nunca
ouviu falar na Organização Mundial do Comércio, bebe um sumo de
garrafa ou come uma maçã de dois em dois meses e lava os dentes com cinza.
[ 5. inocentes, seja onde for ]
Martin Luther King dizia: «An injustice anywhere is a threat to justice everywhere».
Na política como na economia, na Wall Street de Nova Iorque ou num
bairro pobre de Goutha, em Damasco, os homens têm que perceber que
só pode ser bom para alguns aquilo que for bom para todos.
Não há nenhuma crise financeira
situada no nosso tempo. A ameaça que paira hoje sobre as
economias ocidentais começou há milhares de anos e resulta da
incapacidade dos homens para partilharem o dinheiro e o poder, e
esta é também uma forma de fundamentalismo.
O que se está a passar em certos
países da América do Sul, África, Ásia e Médio Oriente é uma espécie
de efeito boomerang de políticas egoístas que têm a
sua origem nos países mais desenvolvidos, fazem as suas maiores
vítimas no outro lado do mundo e hão-de regressar para nos lembrar
que é aqui que tudo começa.
Nos últimos 50 anos, só os territórios
da América do norte e da Europa ocidental conseguiram viver num
clima de relativa segurança. Mas, porque é que os poderosos
americanos se envolveram no inferno do Vietname e nas batalhas pelo
petróleo no Iraque e no Koweit, senão para alimentar o seu negócio
sustentado por esta espécie de paz podre? E, enfim, o que são 50
anos, comparados com o último século dos gulags na Sibéria,
dos crimes de Mao, dos
campos de concentração nazis, das bombas de Hiroshima e Nagazaki e
das lutas fratricidas nos Balcãs?
Ninguém está livre da guerra. Somos
todos feitos da mesma massa do Diabo.
______
"porque está o regime sírio a matar bebés?"
A pergunta da jornalista colombiana ao
serviço da CNN é de Agosto de 2012 e já vinha ilustrada por
uma fotografia de crianças mortas, em tudo parecida com os registos
dos ataques dos últimos dias em Damasco. Aliás, alguns especialistas
dizem que
há provas do recurso a armas químicas em Dezembro do ano passado.
fonte: CNN
online, Síria, 16 de Agosto de 2012.
Alguns dos actuais paladinos da liberdade, como o
jornal francês Libération («SYRIE,
L'IMPUNITÉ», 23 de Agosto de 2013) acham que a comunidade
internacional demora uma eternidade a actuar. O que eles querem dizer
é que
só há uma resposta possível à pergunta de Frida Ghitis: mais guerra
e mais mortes de crianças inocentes.
Os EUA e a Europa actuarão na Síria para
garantirem a estabilidade do fornecimento de petróleo e dos seus
negócios lucrativos, incluindo a possibilidade de escoarem o
armamento que produzem desde que seja utilizado a uma distância
considerável. Foi assim durante milhares de anos e assim continuará
a ser nos próximos séculos. Infelizmente, estas conclusões parecem
enquadrar-se na habitual teoria da conspiração de que são acusados
os chamados párias de esquerda, mas a verdade é que
nenhuma intervenção armada substitui um
relacionamento entre os povos baseado na confiança mútua, no desenvolvimento
da Educação e do comércio
justo, na dignificação do trabalho e na
tolerância política e religiosa.
Estas crianças são mártires. Por quantos
mais anos iremos combater a guerra com mais guerra? Deve
ser possível, algum dia, agir de outra maneira.