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Título: «Corresponderá exactamente a cada nível do pensamento uma classe social?»
Subtítulo: «O Século
C.N.A.»
Edição: GALÁPAGOS — fábrica de poesia
Capa:
Passagem para o
outro lado (Muro de Berlim)
Formato:
11,5 x 15,5 cm
Número de páginas: 86
Data: Abril de 1999
Impressão offset com acabamento cosido
Preço: 10 euros |
«Nong qua, nong qua» (muito quente, muito quente). Segundo o fotógrafo Nick Ut, eram estas as palavras da jovem Kim Phuc (a 'rapariga do napalm') e dos seus companheiros, quando fugiam dos ataques a Trang Bang, no Vietname, em 1972.
A jornalista Judith Coburn, do L.A. Times, fez em 1989 uma espantosa reportagem sobre Phan Thi Kim Phuc (cujo nome em vietnamita significa 'felicidade dourada'), que sobreviveu aos bombardeamentos a Trang Bang, no dia 8 de Junho de 1972, e veio a encontrar-se em Havana, 17 anos mais tarde, com o mesmo fotógrafo da Associated Press que a socorreu depois de a fotografar.
Com a fotografia, Nick Ut acabaria por ganhar o Prémio Pulitzer, em 1973, enquanto a jovem Kim Phuc foi tratada com êxito nos hospitais de Cu Chi e Saigão, tendo sido assistida neste último pelo Dr. Arthur Barsky e pelo seu assistente, Dr. Mark Gorney, que se celebrizou mais tarde como cirurgião plástico em S. Francisco.
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ÁS DE ESPADAS
{ My dear Colby }
My dear Colby
dá-me 300 libras.
Tenho uma dúzia de
quadros de aldeia
mais dois chefes de distrito.
Quanto me dás por dez unhas
arrancadas das mãos
de uma mulher de Long An?
My dear Colby
arranjas-me um ás de espadas
para pôr na boca
do próximo vietcong
decapitado?
___
Colby = William C.; agente da CIA encarregado de chefiar o «Programa Fénix» no Vietname, desde 1968 até ao seu término em 1975.
300 libras = segundo revelações posteriores, os americanos seduziam os aldeãos vietnamitas pagando-lhes consoante a patente dos comunistas abatidos. 20 libras por um quadro de aldeia e 30 libras por um chefe de distrito.
MAIO DE 1994
MADE IN U.S.A.
Para Granada made in U.S.A., vamos dar
uma oportunidade à paz. Vão todos ser felizes daqui em diante made in U.S.A.
Para o Afeganistão made in U.S.A. pó-de-talco para conservar
30 mil mortos só em Cabul.
Depressa para a Argélia made in U.S.A.
a civilização precisa de centenas de jornalistas livres para os noticiários
made in U.S.A.
Para a Argentina, «um dia», como diz o meu filho,
made in U.S.A.
Klement R, Maler J, Altmann K, Helmut Gregor «o anjo»
comida de rato embrulhada em papel de jornal
Perón é nosso amigo.
Para o Cambodja e a Somália made in U.S.A. via ONU
caixas de fósforos, sal e açúcar, farinha de trigo dos Grandes Celeiros
cabeças a prémio
criminosos de guerra muitos dólares made in U.S.A.
Será hoje Pol Pot também made in U.S.A.?
Para as Filipinas made in U.S.A. como antigamente
já temos um pé no governo. Uma fábrica de sapatos
às portas da Casa Branca.
Para o Panamá made in U.S.A.
já não temos vícios como antigamente
Noriega «cara de piña» pode apodrecer
in MCC, south of Miami.
Cigarros Camel made in U.S.A. para os generais indonésios,
quando chegará made in U.S.A. a Timor? Talvez
num caça-bombardeiro desde Bona
made in U.S.A.
é tudo uma questão de cultura
erva americana sobre as montanhas como «um dia»
no Vietname.
Até que enfim, já vamos a caminho made in U.S.A.
UM DIA DESTES, 33 HOMENS DE NEGÓCIO AMERICANOS
SOBREVOARAM A CROÁCIA NUM AVIÃO DE GUERRA
E DESPENHARAM-SE MORRERAM TODOS MADE IN U.S.A.
Made in U.S.A., também,
quando entrarás na minha consciência?
Encontrar-te-ei?
Exterminar-te-ei?
POR FAVOR CHAMEM UM MÉDICO INDEPENDENTE.
QUERO UM NEURO-BIÓLOGO INDEPENDENTE PARA ME ESVENTRAR
O «CENTRO MORAL» DO CÉREBRO.
NÃO QUERO UM PSICANALISTA MADE IN U.S.A.
[Mallarmé, de quem somos todos filhos,
concebeu-nos para o suicídio
para nos dissiparmos e não sermos senão
consciência pura].
América das oportunidades perdidas
god bless you
porque não sabes o que fazes.
___
Ricardo Klement, Juan Maler, Klaus Altmann, Helmut Gregor = aliás, Eichman, Kopps, Barbie e Mengele sob disfarce.
MCC = Metropolitan Correctional Center (Miami), onde o presidente deposto do Panamá, ex-agente da CIA, ficou detido numa cela de luxo à espera de julgamento.
erva americana = erva rasteira, vulgo erva-daninha, única vegetação possível ainda hoje em muitas terras vietnamitas arrasadas pelo famoso gás laranja dos norte-americanos.
Até que enfim, já vamos a caminho = expressão atribuída a Roosevelt aquando da entrada dos EUA na II Grande Guerra.
«centro moral» do cérebro = extraído dos estudos de António e Hanna Damásio, da Universidade de Iwoa, sobre o cérebro de Phineas Gage e as conclusões já avançadas pelo médico deste (John Harlow) no século passado:
«O equilíbrio entre as faculdades de inteligência e as tendências animais [de Gage] tinha sido destruído».
de quem somos todos filhos = Mallarmé segundo Yves Bonnefoy.
AGOSTO DE 1996
RESISTÊNCIA
Em Sarajevo quero uma casa nos subúrbios
para me proteger dos obuses. Não quero
portas cravadas com balas que perpassam para o quarto
dos vizinhos.
Em Moscovo quero uma casa nos recuados
para me proteger das gazuas. Como resistirei?
Em Díli, onde sonhei um dia viver,
deverei proteger-me nas montanhas…
Tive em tempos uma ‘sala de fumo’ em Treblinka,
e não sobrevivi.
Numa súbita reencarnação
nunca serei argelino em Paris.
Ressuscitado pela milionésima vez,
em que janela à beira-mar hei-de refugiar-me
sem que os piratas me descubram?
SETEMBRO DE 1994
O POLVO AMERICANO
«[América] vai-te lixar com a tua bomba atómica.
Não vou escrever o meu poema enquanto não estiver perfeitamente equilibrado.
América não empurres eu sei o que faço».
GINSBERG
Oh como eu adorava ter vivido em Trang Bang
ver a minha filha esmagada pelo napalm-mijo fétido
dos americanos,
a minha irmã mais nova trucidada por
um canhão entre as pálpebras com
um filho «bui doi» nos braços,
mais um pagode destruído com dezenas de mulheres e crianças,
talvez o pôr-do-sol espelhado como sangue
nas águas dos arrozais de Phuc Tan em Hanói!
Na cadeia de Huntsville há condenados fiéis a Noriega
que fumam grandes charutos oferecidos por Fidel Castro
via Nicarágua,
e nas ruas de Washington espalham-se todos os fins-de-semana
retratos coloridos de Gorbatchov
como num quadro de Warhol.
Muito antes, já o capitão Paul «Pappy» Gun
da U.S. Air Force
fazia acrobacias e voos rasantes com o seu B-25
sobre as ilhas filipinas rumo à Austrália
com os traidores Yamagata e Komori a bordo.
No Japão, quantos solitários abraços haverá que contar ainda hoje
entre traiçoeiros «nisei»
e honrados mártires «hibakusha»?
Em Saigão, muitos acidentes dar-se-ão ainda
entre os velhos Volga dos generais soviéticos
e os Dodge dos vietnamitas albinos-traçados ou dos seus pais,
veteranos saudosistas regressados ao palco de guerra.
Na América, Marina, a inconsolável viúva de Lee Harvey Oswald
— esse obscuro americano-russo —
acusa J. Edgar Hoover de ter sabido em tempos
quando iria ter o próximo período
e quando deveria enviar-lhe o próximo namorado. Cada vez mais,
ela admite que o presidente Kennedy foi morto
pela mafia do seu país quase adoptivo.
Oh como eu amo a América nostálgica do entardecer no fumo das fábricas,
dos grandes silos de trigo nos longos campos cultivados,
essa quase inexistência de tudo,
um abraço suave, um rosto vagamente amargurado.
___
«Bui-doi» = «a poeira da vida» segundo tradução directa, ou as crianças que lembram aos vietnamitas que o inimigo foi para a cama com as suas mulheres.
Yamagata e Komori = agentes americanos de origem japonesa, que juntamente com Sakakida integraram os serviços de contra-espionagem dos EUA durante a II Guerra Mundial. Ironicamente, o sargento Sakakida era descendente de naturais de Hiroshima que haviam emigrado para o Havai no início do século.
«Nisei» e «Hibakusha» = aqueles designam-se assim quando pertencem à primeira geração de japoneses nascidos no estrangeiro, e estes são os sobreviventes da bomba atómica assim designados para se distinguirem das gerações seguintes.
Lee Harvey Oswald = ex-fuzileiro naval norte-americano presumivelmente colocado pelo FBI de Edgar Hoover como informador na Rússia, onde se casou em Minsk. Regressado ao Texas, a sua desmobilização dos Marines foi desacreditada em 1962 por alegadas simpatias pela URSS, sendo finalmente acusado pela Comissão Warren do assassínio do presidente americano em 1963. Abatido pouco tempo depois pelo criminoso Jack Ruby, a sua esposa acredita que «Lee foi morto para o impedirem de falar».
SETEMBRO DE 1991
OCUPAÇÃO I
«Um mártir deve ser enterrado com as roupas ensanguentadas».
(Trilogia Afegã, DUCE Films Int., 1986; real. Jeff B. Harmon).
(Razi Haji Latif):
Chamo-me Razi Haji Latif tenho 76 anos e há 7 anos que estou na jihad em Kandahar tenho sob o meu comando 4500 mujahedines combatemos no campo na rua e nos mercados em Kandahar não há montanhas onde nos possamos esconder Kandahar é a província afegã mais importante daí que os russos tenham concentrado os seus maiores efectivos aqui embora sejamos obrigados a combater em campo aberto não temos medo os meus mujahedines estão firmes e resistem ferozmente contra o infiel(...).
Barbrak Karmal e os russos ofereceram cento e cinquenta mil rupias pela minha captura morto ou vivo nunca hão-de conseguir pois tenho do meu lado Alá o Profeta e o Sagrado Corão Alá é meu amigo e acabaremos por banir Karmal da nossa terra milhares de homens meus foram martirizados mas pagamos ao infiel da mesma moeda os meus mujahedines já mataram russos e khalkis e partchamis comunistas aos milhares em nenhum outro sítio no Afeganistão houve tantos mártires como em Kandahar os russos bombardeiam o nosso país assassinam os nossos filhos violam as mulheres e o Corão por isso declarámos uma jihad contra os inimigos e lutaremos ATÉ AO NOSSO ÚLTIMO FÔLEGO.
OCUPAÇÃO II
(Lalwan):
Chamo-me Lalwan e sou soldado do avô Haji Abdul Latif há três anos fui capturado pelos soldados russos acusaram-me de ser mujahedin e enfiaram-me na cadeia de Pol-i-Tcharki espancaram-me e deram-me choques eléctricos nos testículos mas nem sob tortura confessei mantiveram-me na prisão durante sete meses e a seguir obrigaram-me a entrar para o exército fugi para Tchaman e juntei-me aos mujahedines do avô Latif desde essa altura que tenho participado na jihad sempre a lutar contra os russos estou aqui com autorização dos meus pais para defender o nosso chão sagrado o Islão e o Corão (...).
Fumo haxixe para passar o tempo só fumo o que aguento e para manter a cabecinha nunca desatino com o haxixe sou capaz de lutar até ficar sem pinga de sangue nas veias ATÉ AO ÚLTIMO FÔLEGO.
OCUPAÇÃO III
(Razi Haji Latif):
Antes da guerra os meus homens eram conhecidos por pai luches ou seja «pés-descalços» para mostrarem a coragem que possuíam fumavam lacraus e cabeças de víbora nos narguilés ou deixavam-se picar por lacraus os pai luches queimavam os braços com brasas de carvão para treinarem o silêncio sob tortura desde que os russos invadiram condenámos essas práticas como sendo contrárias ao Islão desde que começou a jihad acabámos com isso tudo os nossos homens têm agora uma conduta correcta são verdadeiros mujahedines como os pai luches os meus homens têm grande carácter e ELEVADO SENTIDO MORAL.
OCUPAÇÃO IV
(Malak Malim):
Chamo-me Malak Malim o que corta a goela dos comunistas em Mahalajat e Argastan com a minha baioneta cortei a goela a dez infiéis se houver 150 infiéis em Maluf hei-de-lhes cortar a garganta a todos se Alá quiser ESTÁ A PERCEBER O QUE EU DIGO?
OCUPAÇÃO V
(Malawi Abdul Bari):
Eu Malawi Abdul Bari tenho sido juiz supremo de Kandahar vai para sete anos o comandante-em-chefe da província de Kandahar é Razi Haji Abdul Latif juntos passamos sentença de acordo com a lei islâmica e a nossa palavra é ordem em toda Kandahar nos últimos sete anos mandámos executar entre seis e sete mil prisioneiros e decepar mil mãos seguimos as instruções dos nossos respeitados dirigentes de Pechawar só podemos cortar gargantas por ordem de Pechawar após a leitura da sentença damos ordem ao carrasco-mor aqui sentado se lhe ordenamos que decapite o prisioneiro com um só golpe então ele assim faz com o machado se lhe damos ordens para enforcar os prisioneiros então ele enforca-os qualquer ordem que dermos ao carrasco-mor ele executa-a o carrasco-mor
executa os prisioneiros segundo um cortar de
garganta ritual ou os mata a tiro OU LHES DECEPA
A MÃO.
(Mohamed Juma):
Chamo-me Mohamed Juma carrasco-mor sou eu quem cumpre as sentenças do juiz Malawi Abdul Bari do tribunal islâmico e de Razi Abdul Latif mandam-me matar os prisioneiros de várias maneiras fuzilamento decapitação ou delapidação nos últimos três anos executei 1500 prisioneiros É ASSIM QUE LHES CORTO A CABEÇA!
OCUPAÇÃO VI
(Razi Haji Latif):
Este rapaz tem nove anos e é cherokee guerrilheiro especializado em golpes de
mão «ataca e foge» tenho muitas outras crianças
como esta que atiram granadas aos comunistas no
mercado.
(Cherokee):
A minha função é esgueirar-me por detrás dos russos e matá-los a eles e aos comunistas com a minha pistola se eles formarem um grupo grande atiro uma granada ATIRO-AS ASSIM! às vezes mato-os à metralhadora.
OCUPAÇÃO VII E ÚLTIMA
Chamo-me Jules Ron Kimble. Tenho 45 anos e estou a cumprir prisão perpétua redobrada por crime organizado, chantagem e homicídio — por homicídios cometidos ao serviço do sub-mundo. Trabalhei em várias coisas. Estive no Klu Klux Klan, desde a invasão da Baía dos Porcos até ao assassinato de Kennedy.
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Jules Ron Kimble = aliás, «Ricco». Ex-agente das operações encobertas da CIA em Montreal, com Raoul Miori terá sido utilizado pelo FBI para encobrir a fuga de James Earl Ray, desde a prisão de Missouri onde este cumpria uma pena menor, até ao Canadá, em Julho de 1967. Onze meses depois, E. Ray foi preso no aeroporto de Londres, e posteriormente condenado a 99 anos de cadeia sob acusação do homicídio de Martin Luther King, ocorrido em Abril de 1968.
AGOSTO/SETEMBRO DE 1992




TODAS AS PUBLICAÇÕES
Outros livros

memória de hibakusha e outros poemas Ed. AJHLP, 1986
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